sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Porque era ela porque era eu

Uma amiga de meu filho perdeu a vida em decorrência de uma lipoaspiração. Fiquei sabendo que o horrível acidente, uma embolia pós-operatória, não é pouco comum. Sensibilizada com a morte da menina e com a dor dos pais, passei a acompanhar com mais freqüência o noticiário a respeito dos desastres que ocorrem em cirurgias estéticas ou em outras formas radicais de intervenção no corpo. O jovem fulminado por um ataque cardíaco causado pelo excesso de esforço, à custa de anabolizantes, em uma academia de ginástica. A moça que teve o rosto desfigurado por queimaduras de primeiro grau ao tentar uma limpeza de pele com produto novíssimo, que deixaria seu rosto de trinta anos com aparência de quinze. Novos e freqüentes casos de acidentes fatais por embolia em lipoaspirações malfeitas. A beleza, no século XXI, tornou-se caso de vida ou morte. Não é necessário recorrer a casos extremos para pensar criticamente a relação entre o corpo, as tecnociências e o desejo. Reconheço que há muitos aspectos, no que se refere aos dois primeiros termos, que fazem dos que viveram e vivem entre os séculos XX e XXI gerações privilegiadas, sem precedentes na história da humanidade. Foi graças à ciência que milhões de mulheres no mundo todo saíram do “estado de natureza” e passaram a viver sua vida sexual independente da maternidade. Graças à ciência conquistamos longevidade, saúde, qualidade de vida, liberdade sexual e também – por que não? – beleza. Tudo isso diz respeito à relação entre a ciência, a tecnologia e o corpo. Mas tais conquistas não incluem nenhum avanço na relação entre os sujeitos e o desejo. Dizem, das novas gerações devotadas às técnicas de cultivo da forma, que são escravas do corpo. Não é exato. São antes escravizadoras do corpo. Obcecadas por um ideal de perfeição que parece cada vez mais ao alcance dos mortais, as pessoas fazem seus corpos trabalhar feito escravos, submetidos aos mais esdrúxulos procedimentos de remodelamento da imagem. É possível que os corpos contemporâneos não sejam mais sacrificados do que os de nossos antepassados, que viviam enfatiotados dos pés à cabeça no frio ou no calor, as cinturas estranguladas em espartilhos, os pescoços torturados por colarinhos altos e engomados, pés apertados em sapatilhas minúsculas, postura rígida, gestos estreitamente vigiados. A diferença é que hoje os sacrifícios se dão em nome da liberdade: a servidão é 100% voluntária. Depois de uma rápida passagem, nos anos 1960/70, pela ideologia dos corpos “ao natural”, despojados de artifícios – outro engodo, aliás –, voltamos, em plena era do avanço de todas as libertinagens, a impor a nossos corpos uma disciplina férrea. Em nome do quê – do decoro, como no tempo dos bisavôs? Dos códigos que regem as diferenças sociais? Da rígida diferenciação estética entre os sexos? Sabemos que não. Hoje nos torturamos, antes de tudo, em nome do – desejo. Escravizamos os corpos para tentar fazer deles o objeto incontestável e unânime do desejo. A confiança de nossa cultura na ciência chega a ponto de acreditarmos que a indústria médica e farmacêutica teria desvendado, afinal, o mistério que cerca o objeto do desejo humano. Ao acreditar piamente no poder da imagem, pensamos ter finalmente enquadrado o desejo (inconsciente) sob o domínio do ego: desejar e fazer-se desejar seriam, de acordo com a idolatria pós-moderna, uma questão de perícia técnica. Não nos deixemos enganar: o que parece uma afirmação triunfante do direito a desejar na verdade é um recuo ante o desejo. É claro que toda sedução, a serviço do desejo sexual, comporta um artifício. Os adornos corporais, os olhares e frases insinuantes, a sensualidade sugerida em gestos e posturas – todos os recursos mobilizados pela sedução visam a produzir, no outro, a esperança de que o sedutor detenha o objeto do desejo que o seduzido desconhece, já que o desejo é, por definição, inconsciente. “Eu sei o que você deseja/ eu tenho o que você deseja”, promete o sedutor com seu jogo de esconder e desvelar. O desejo, por desconhecer seu objeto, é facilmente mobilizado pelo artifício que vela, no corpo, o que de fato não está lá. Nem lá, nem em lugar nenhum. Esta é a definição lacaniana do falo. O falo, significante da falta, seria a presença de uma ausência – daí decorre sua íntima relação com todas as dimensões da imagem. O que mobiliza o desejo em sua expressão mais candente, a sexual, é exatamente uma imagem capaz de sugerir a presença do objeto a, designação do objeto (perdido) do desejo, cujo representante é o falo imaginário. Por isso a cultura contemporânea, dominada por uma abundante produção de imagens, em escala supra-industrial e supranacional, é falocêntrica. Não porque o poder do macho (o portador do falo, nas teorias sexuais infantis) predomine, mas porque a dimensão imaginária do falo é a principal mediadora do laço social. É verdade que muitas religiões, inclusive a católica, cultuam imagens que representam diversas dimensões do sagrado. Mas só nas sociedades laicas do capitalismo tardio a adoração pela imagem abrange praticamente todas as dimensões da vida. Como bem observou Eugênio Bucci, somos a única civilização que acredita piamente no que os olhos vêem. No entanto, é bom não confiar demais no poder sedutor do falo imaginário. Na mesma medida em que fascina, a presença do representante fálico desmobiliza o desejo. Em primeiro lugar porque a perfeição das formas – pensem, por exemplo, nas esculturas da Antiguidade clássica – apela a um gozo estético que exclui a dimensão sexual do desejo. A perfeição das formas remete à plenitude; ao sujeito (do desejo) só resta a beatífica contemplação: a perfeição o exclui, porque nela parece que nada falta. A perfeição corresponde a uma exigência superegóica que é avessa ao desejo. A morte é sua mais completa tradução. O que excita o desejo sexual é da mesma ordem dos mistérios e segredos que mobilizam a curiosidade. É próprio dos apaixonados não serem capazes de dizer o que viram no ser adorado. “O que foi que ela viu nele?” “O que foi que ele viu nela?” Essa é a pergunta que melhor define a relação dos seres de linguagem com os mistérios do desejo. Uma pergunta que situa, ao mesmo tempo, a singularidade das motivações inconscientes e o caráter inefável do objeto a. Uma beldade produzida industrialmente, de beleza incontestável, certamente produz fascinação, cobiça, vontade de posse. A fantasia de conquistar uma pin-up ou uma modelo famosa passa também por delírios de prestígio: quem não se envaideceria de aparecer publicamente ao lado da mulher (ou do homem) cuja imagem, real ou virtual, é capaz de atrair todos os olhares? Mas se essas motivações secundárias e obviamente egóicas participam das fantasias que cercam o desejo sexual, seu impulso mais poderoso parte de regiões mais obscuras. Suas raízes inconscientes estão além, ou aquém do falo: a falta, a castração, o incesto, a cena primária. O desejo não tem garantias contra a angústia. Daí que a busca contemporânea pela perfeição representa, na verdade, um recuo em face do desejo. A adesão ao saber promovido pela indústria do espetáculo a respeito da natureza inquestionável do objeto do desejo tem mais a ver com nossa servidão voluntária do que com uma aparente liberdade para desejar. Vejamos: a aposta nos recursos supostamente infalíveis de controle do corpo, de modo a fazer dele um semblant fálico, é a mesma aposta que as histéricas conheciam desde o século XIX, muito antes que a tecnologia permitisse chegar tão perto da perfeição formal: fazer-se desejadas para não desejar. Mas o fascínio que o corpo-falo da histeria produzia e produz nos homens nunca foi garantia de felicidade sexual (nem existencial). Escravizadas pelo manejo do que a psicanálise apelidou de mascarada, as histéricas estão impedidas de usufruir daquilo que, em homens e mulheres, torna possível e prazerosa a entrega sexual: a falta. Não me proponho a repetir aqui a lição freudiana que estabelece a relação fundamental entre a falta (castração) e o desejo. O que interessa a meu argumento é que a obsessão pela imagem perfeita nos aproxima mais da frigidez narcísica do que do desejo. O que parece libertinagem é uma espécie bastante refinada de moralismo: recusamos o corpo vivo, pulsional, imperfeito e mortal, em favor de um corpo/imagem, pura exterioridade oferecido à cobiça e à contemplação, muito mais morto (do ponto de vista libidinal) do que parece. O que parece a máxima consagração das prerrogativas do indivíduo mascara um medo terrível das diferenças, das singularidades, das marcas diferenciadoras de cada um. Toda cultura impõe suas formas estéticas, mas nenhuma desenvolveu como a nossa a possibilidade técnica de produzir em série essas formas, na carne de cada um. O problema com os corpos industrialmente fabricados não é que sejam exageradamente artificiais. O que é mais artificial do que as escaras e pinturas indígenas, por exemplo, ou do que o ouro que cobria as vestes dos faraós? O problema é que nos peitos siliconados, nas faces imobilizadas pelo rigor mortis do botox – faces sem marcas de expressão, mas, por isso mesmo, sem expressão –, a grife e a fatura do artifício deixam sua inscrição junto com o produto final. Tais corpos podem ser catalogados, mapeados como os mapas do corpo das vacas estampados nos açougues, indicando os diversos cortes do bife: os procedimentos médicos deixam suas etiquetas (com as cifras do preço) nas intervenções de uma beleza cada vez mais padronizada. As marcas da singularidade do sujeito tendem a zero. O jeito de olhar, a ruga no canto do sorriso, o franzir do nariz são detalhes singulares que Freud associou ao fetiche, cujo poder em mobilizar o desejo é proporcional à sutileza. Não nos esqueçamos, entretanto, que o poder do fetiche não é de domínio daquele que o porta no corpo – ele reside em uma articulação inconsciente que o sedutor não domina, pois se passa do lado do seduzido. O que se perde, ao sacrificar a singularidade a favor da beleza-padrão, é o que qualquer poeta chamaria de – “graça”. Nessas marcas singulares do sujeito reside o “não-sei-o-quê que faz a confusão”, como no samba de Ari Barroso. Mas quem aposta na graça? Quem se arrisca a manter sua diferença em uma sociedade em que a subjetividade pode ser adquirida em série, como uma mercadoria a mais? O perfeito controle do corpo não acrescenta nada ao saber erótico. Quem ainda entende de erotismo não são os cientistas da saúde, nem os escravos performáticos da sedução. São os poetas. Referências Bandeira, M. (1930). Libertinagem. Rio de Janeiro: Paulo Pongetti. Bandeira, M. (1993). Estrela da vida inteira (20ª. ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Resumo A beleza, no século XXI, tornou-se caso de vida ou morte. É a partir dessa idéia que a autora pensa criticamente a relação entre o corpo, as tecnociências e o desejo. Se por um lado, graças à ciência, conquistamos longevidade, saúde, qualidade de vida, liberdade sexual e também – por que não? – beleza, tais conquistas não incluem nenhum avanço na relação entre os sujeitos e o desejo. O primeiro eixo do artigo desenvolve o argumento teórico que o perfeito controle do corpo não acrescenta nada ao saber erótico, ao contrário, significa um recuo em face do desejo. Por isso, na segunda parte do texto, a autora apresenta o argumento poético, ao se referir aos poetas como aqueles que ainda entendem de erotismo. Baseia-se em um dos seus autores prediletos, Manuel Bandeira. Palavras-chave Corpo. Desejo. Imagem. Inconsciente. Tecnociências. Summary Desire sciences: Considerations about a knowledge that isn’t known. An essay with two arguments The beauty, in the XXIst century, became a matter of life or death. From this idea the author reflects about the relation between the body, the tecnosciences and the desire. If on the one hand, thanks to science we have conquested longevity, health, quality of life, sexual freedom and also – why not say? – beauty, such conquests do not include any advance in the relation between the individuals and the desire. The first part of the article develops the theoretical argument that the perfect control of the body has nothing to add to the erotical knowledge but, in contrast, means a retrocession in the understanding of desire. Therefore, the second part of the text presents the poetical argument, referring to the poets as those that still understand eroticism, based on one of the author’s favourite writer, Manuel Bandeira. Key words Body. Desire. Image. Unconscious. Tecnosciences. Maria Rita Kehl Rua Dr. Franco da Rocha, 498 – Perdizes 05015-040 – São Paulo – SP Tel.: 11 3675-0463 mritak@uol.com.br

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