terça-feira, 28 de junho de 2011

O QUE ME MOBILIZA A CRIAR?


Charlene Sadd

Acredito na subversão da arte em busca de uma sociedade sempre renovada à medida que seus valores não correspondem com as necessidades de uma relação saudável entre humanos. Acredito e compactuo com a quebra de estruturas tradicionais que a performance propõe para uma ação cênica, indo muito mais além da representação, de uma representação cristalizada, e pensando no ato como um todo, na sua integralidade; Sendo sua questão primordial - para mim- a vida, “tudo é uma questão de vida”. A maneira que a performance passou a ser uma escolha consciente foi justamente quando essa ficha caiu, que nada poderia ultrapassar a vida vivida. O trabalho sobre mim mesma foi que possibilitou este encontro com a performance. “Acima de tudo, de tudo mesmo, está o viver, a própria vida vivida. É nela que temos a nossa referência máxima - Ela constitui, ao mesmo tempo, a referência e o contexto para os nossos valores”. (FAYGA OSTROWER, 1998).
Muitas das minhas escolhas foram pautadas por uma apreensão de que minhas experiências pudessem ser autênticas, coerentes com meus pensamentos e anseios. Procurei assim para mim uma prática artística que correspondesse não somente esteticamente falando, mas também de forma ética.
Vivencio por meio da performance um lugar de exploração pessoal e artística. Este lugar de descoberta foi na verdade revelado, ou melhor, escavado por meio dos treinamentos que tive junto a Cia. LTDA de Maceió – AL (http://companhialimitda.blogspot.com/), a qual integrei de 2006 a 2010; Aliada ao treinamento tiveram leituras muito importantes, basilares. A primeira grande leitura foi do livro Teatro Pobre de Jerzy Grotowski, e outros materiais que obtive sobre ele como palestras, artigos e dentre outras leituras sobre o corpo na arte. A prática de treinar concomitante a leituras sempre me abriram muitas possibilidades de repensar a própria prática.
Posso dizer que meu modo de “operar” é: Investigar com meu corpo e buscar referências: um livro, uma obra em vídeo, em fotos, as referências mais variadas possíveis para o aprofundamento de meu trabalho, mas sem dúvida o corpo assume o lugar de destaque. Sendo O Corpo, agindo por meio do corpo – o corpo como configurador da experiência sensível - é que consigo pensar numa possível autonomia humana. “Então o corpo é o primeiro momento da experiência humana, E antes de ser um ‘ser que conhece’, o sujeito é um ‘ser que vive e sente’”. (ARANHA, 1993).
É preciso conhecer o corpo, quebrando-lhe as resistências e possibilitando, assim, o domínio de si (e não só o corpo na ideia de corpo-objeto). E preciso conhecer também o espírito, para que dele nos apropriemos. Mas, a ação espiritual que se pede, só pode ser possível por meio de uma totalidade de um ser que é corpo e espirito ao mesmo tempo, nesta perspectiva de trabalho não cabem às dicotomias. “O corpo nunca é dado ao homem como mera anatomia: o corpo é a expressão dos valores sexuais, amorosos, estéticos” (ARANHA, 1993); Podemos dizer sociais também.
O que busco é justamente isso,  me articular a tal ponto que possa me reconhecer enquanto pessoa autônoma, investindo é uma técnica de si. Uma técnica de si seria como nos fala Foucault, um meio pelo qual os homens elaboram um conhecimento sobre eles mesmos. (...) Ao longo da história muitas técnicas de si foram sendo elaboradas e técnicas que consistiam em coisas a praticar, não é um conhecimento de si obtido longe da experimentação de si.
Pensar no meu trabalho, o que para mim é imprescindível a um processo de crescimento orgânico é pensar:
  • No corpo como fonte intrínseca da criação – No campo das artes se faz necessário adentrar numa esfera não tão restrita e muitas vezes miserável como nos apresenta o nosso dia-a-dia, mas numa esfera diferente para falarmos de coisas que não se fala, para vivermos o que não se vive, e o corpo tem pressa e sente a necessidade dessas experiências que o faça transformar-se a si mesmo. Jorge de Sena – poeta português do início da década de 40 - nos fala muito bem dessa urgência do corpo: “O corpo não espera. Não. Por nós ou pelo o amor. Este pousar de mãos, tão reticente e que interroga a sós a tépida secura acetinada, que palpita por adivinhada em solitários movimentos vãos; este pousar em que não estamos nós, mas uma sede, uma memória, tudo o que sabemos de tocar desnudo, o corpo que não espera este pousar que não conhece, nada vê, nem nada ousa temer no seu temor agudo... Tem tanta presa o corpo! E já quando um de nós ou quando o amor chegou”.
O que ser quer com o corpo, neste tipo de trabalho é: que a criação operada e encarnada por ele provoque esse despertar, de que o corpo tem pressa, ele não espera por nós, porque uma vez perdida uma experiência, é perdida também uma oportunidade de entendimento sobre quem este corpo realmente é ou não o é.
O corpo se perde quando privado de conhecimento. O engajamento do performer é esse rumo a uma posse de conhecimento extra, e o seu trabalho é, a meu ver, contagiar as pessoas de que existem universos dentro de nós que se fazem ainda desconhecidos.
O corpo tem pressa, e por muito tempo ele foi e ainda é privado por conta de um pensamento cartesiano arraigado na nossa cultura ocidental. O corpo tem pressa para se manifestar enquanto matéria espiritual.

  • No controle do espírito pelas formas – “O performer deve trabalhar numa estrutura precisa. Fazendo esforços, já que a resistência e o respeito aos detalhes é o regime que permite tornar presente o Eu – EU. Don’t improvise please! É preciso encontrar ações simples, mas tomando o cuidado para que elas sejam dominadas e que isso dure. Senão, não se trata do simples, mas do banal”. (GROTOWSKI, 1993).
A expressão do espírito da maneira como ocorrem na performance, ou em outros meios que o excitam, como nas religiões, principalmente nas que não esquecem do valor do corpo em seus ritos, como as afro-brasileiras e tantas outras, é um acontecimento de grande raridade e efemeridade. Portanto, cada momento, cada gesto, e cada ação produzida têm um valor inestimável.
Os lugares a que se podem chegar nessa investigação corpo-espírito, as profundezas humanas desconhecidas numa vida cotidiana automatizada, os risos nunca experimentados antes, sensações, olhares momento de êxtase, de entrega, momento de transgressão que no dia-a-dia não tem espaço, tudo isso tem lugar garantindo – mediante ao compromisso do performer – no ato performático.
As coisas do espírito não são de fácil expressão. Há que se dar tempo para o que nos é obscuro se revele no ato, ou que criemos um olhar capaz de ver o próprio escuro e apresenta-lo como tal, sem necessariamente converter este escuro em luz. Essa na verdade é uma proposição do Giorgio Agamben quando fala que contemporâneo é aquele que consegue “manter fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente (...). Uma primeira resposta nos é sugerida pela neurofisiologia da visão. O que acontece quando nos encontramos num ambiente privado de luz, ou quando fechamos os olhos? O que é escuro que então vemos? Os neurofisiologistas nos dizem que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina, ditas precisamente off-cells, que entram em atividade; produzem aquela espécie particular de visão que chamamos de escuro. O escuro não é, portanto, um conceito privativo, a simples ausência da luz, algo como uma não-visão, mas o resultado da atividade das off-cells, um produto da nossa retina ”. Converto tal pensamento para essa ideia de apreensão do espírito pelas formas e enxergando não a superfície, mas criando habilidades para enxergar o que pertence ao que não se vê tão facilmente diante de tanta luminosidade em que vivemos. Vivemos numa sociedade espetacular, em que tudo é possível de exibição; estão aí as redes sociais somente como um dos índices desse pensamento.
Há que se investir horas de trabalho, paciência, desprendimento para conhecer intimamente os medos, travas. Há que se articular no caso do performer o indizível, o obscuro em ações, por meio do artifício, da técnica, das formas, para que o espírito em toda a sua complexidade emerja.
Quanto, mais nos absorvemos no que está escondido dentro de nós, no excesso, na revelação, na autopenetração, mais rígidos devemos ser nas disciplinas externas isto que dizer a forma, a artificialidade, o ideograma, o gesto. Aqui reside todo o princípio da expressividade”. (GROTOWSKI, 1971).

  • No entendimento de que ação cênica é um ato de doação e que só acontece quando viabilizada pelo amor – Como lugar de encontro sensível, provocador e aberto a performance nos possibilita relacionamentos na mesma proporção, essa é a intenção. Podemos ver isso se manifestar como intuito em muitas outras linguagens artísticas, como é o caso de Denise Stoklos com seu teatro essencial: “Teatro essencial é aquele que o ator, é o autor, diretor, e coreógrafo de si mesmo. Seus instrumentos são o corpo, com o corpo ele desenha o espaço, com sua voz ele mostra o afeto do personagem, e com o seu pensamento, sua memória, sua intuição ele constrói a dramaturgia isso é, ele une a voz e o pensamento. Seus temas sempre serão sobre a natureza humana, por tanto universais, inadiáveis daí políticos. A intenção é que o público sai do teatro sempre revigorado, em suas lutas por liberdades e amor, afinal é para isso que estamos aqui”. (STOKLOS, 2008).
Acredito numa arte que busca o que em nós é oculto, procurando romper com a ideia de promover uma sociedade que vive no “tempo dos camaleões”: “(...) Dupla linguagem, dupla moral: uma moral para dizer outra para fazer”. (Quo Vadis_?_...www.espacosacademicos.com.br/035/35clopes.htm).
Para sobrevivência da arte como toda é muito mais essencial o encontro entre seres perceptíveis ou seres que estão em busca dessa perceptibilidade, sendo mais importante do que qualquer outro elemento artístico dito estruturante. Uma ação cênica, um ato performático não se basta em si, ele não concretiza com a produção e a realização do mesmo, mas no momento em que ambos: Performer e público se vêem “nus” diante do outro, podendo ver seus medos, suas mesquinharias, suas faltas consigo mesmos, podendo ver sua própria impotência; pois como diz Agamben: “Nada rende tantos pobre e tão pouco livres como este estranhamento da impotência. Aquele que é separado do que pode fazer, pode, todavia, resistir ainda, pode ainda não fazer. Aquele que é separado de sua impotência perde em contrapartida, antes do mais a capacidade de resistir”. (AGAMBEN, 2009).
Essa entrega é permitida pelo mais nobre dos sentimentos – a meu ver – o amor: “Amar significa abrir – se ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo numa amálgama irreversível. Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no outro, o companheiro no amor”. (BAUMAN, 2004).
A coragem que se precisa para fazer um ato total, de verdadeira entrega pode ser encontrada no amor, ele permitirá tamanha abertura. Por meio dele teremos forças para descer sobre nossas próprias profundezas psico-afetivas, e torna-las possíveis de conversação. “O amor é afim à transcendência; não é senão outro nome para o impulso criativo e como tal carregado de riscos, pois o fim de uma criação nunca é certo”. (BAUMAN, 2004).
  • Na certeza de que somente pelo movimento podemos ganhar consciência e que essa ideia de consciência é imprescindível para o ganho de novos espaços cênicos - A consciência está sempre ligada ao conhecimento, compreensão, iluminação, ao despertar do ser humano; ela sempre propícia momentos em que o ser toma posse dele mesmo por meio de uma ação reflexiva.
É tão forte a ação da consciência sobre quem a toma que é por meio dela que sabemos saber; não seria possível nenhuma forma de conhecimento sem a consciência de que temos esse conhecimento, de que conseguimos compreender esse conhecimento: “Desde seus mais humildes princípios, consciência é conhecimento, conhecimento é consciência, não menos interligados do que a verdade e a beleza para keats”. (DAMÁSIO, 2000).
Ela gera uma cadeia de emergências cerebrais que validam a existência humana: “O anel reflexivo engendrado pela consciência produz, conforme a atenção do sujeito, a consciência de si, a consciência dos objetivos do seu conhecimento, a consciência do seu pensamento, a consciência da sua consciência. Esse anel reflexivo constitui um meta nível que permite um pensamento do pensamento capaz de retroagir sobre o pensamento, assim como a consciência de si permite retroagir sobre si”. (DAMÁSIO, 2000).
A consciência é essencial à existência humana e, todo mundo possui essa faculdade, mas, não existe a CONSCIÊNCIA, como lugar a se chegar e do qual não se sairá jamais. “Não é de forma nenhuma uma instância fixa e estável; está sujeita a todos os erros possíveis do conhecimento humano. Frágil e incerta como uma chama de uma vela, pisca, oscila, pode desaparecer ou iluminar-se. O menor sopro pulsional pode apaga-la; corre o risco de ser alterada por um mínimo desarranjo químico da maquinaria cerebral. Trata-se de uma vigilante vacilante”. (MORIN, 2005).
Com isso entendemos que é possível se ter tomadas de consciência em vários momentos de nossas vidas e não ter A tomada; permitindo assim criar estados de consciência, gerando níveis de consciência que se ampliam, e que geram outros níveis; esses vários estados, por sua vez, permitirão o aparecimento de uma grande rede de consciência.
Mesmo sendo a consciência uma faculdade humana, é certo que esses níveis do qual falamos depende de um processo de investimento, não é algo dado; A consciência precisa ser alimentada. “A consciência sempre emerge nas interdependências. O pensamento aciona a inteligência e se auto-ilumina pela reflexividade (consciência). A consciência controla o pensamento e a inteligência, mas, necessita ser controlada por eles. A consciência precisa ser controlada ou inspirada pela inteligência, a qual necessita de tomadas de consciência”. (DAMÁSIO, 2000).
Na medida que se amplia um nível de consciência, o ser se amplia de forma conjunta, o ser é a sua consciência. A ampliação do ser para a performance que tem como base não uma representação do humano por meio do personagem mais o próprio humano, ou seja, o sujeito na ação, é de fundamental importância porque dependerá dele a criação do processo artístico. À medida que o performer se alarga, sua criação penetrará novos espaços de consciência, gerando novas criações também.
No trabalho do performer a premissa da ação, de construir para desconstruir e tornar a construir – que é justificada pela relação que esta linguagem estabelece com o tempo, não de continuidade, mas de valorização do instante presente com um momento que comporta experiência. Estando não no que passou ou no que virá, mas percebendo onde estamos no agora - é que gera consciência, por meio da ação no agora, para perceber o agora. Sem movimento nada pode ser realizado na vida e no ato performático, nada pode ser absorvido, percebido, reconhecido; sendo assim o performer pouco terá a oferecer.
Ainda, “a consciência permite não somente a reflexão do espírito sobre todas as coisas e a vigilância crítica, mas também a mediação”. (MORIN, 2005).
Para o performer talvez seja essa a maior finalidade da consciência: a mediação, ter consciência não somente para conhecer ou saber–se conhecedor, mas para torná-la mediadora entra as coisas, fatos e pessoas, sendo ele um fazedor de pontes, mediador num encontro entre performer e público.

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